terça-feira, 19 de abril de 2022

 

Com um mercado editorial marcado por grandes editoras que buscam cada vez mais o melhor em publicações nos mais variados gêneros, ainda é difícil para muitos autores iniciantes conseguir o tão desejado direito de ser lido pelo grande público. Aliado a isso, temos a severa realidade de um país que se encontra como o 53º em educação; onde o analfabetismo funcional na faixa etária de 15 e 64 anos alcançou, segundo o IBOPE, 28% no ano de 2009; onde 30% dos alunos que chegam no 5º ano não conseguem ler e 20% dos alunos que “concluem” o ensino fundamental não dominam o uso da leitura e da escrita.

É preciso que se tenha uma visão holística da realidade no que diz respeito à produção literária no Brasil. Um olhar mais atento é suficiente para nos mostrar o que existe de produção por aqui.

Pode ser difícil reconhecer, mas se queremos melhorar alguma coisa precisamos colocar os pés no chão e encarar o fato de que se produz muito neste país, porém, com pouca ou nenhuma preocupação com a forma, o estilo e o requinte naquilo que se produz. E por quê? Os dados acima falam por si.

Tudo bem, devemos dar às pessoas o direito à livre produção, ao extravaso de suas ideias e “criatividade”. O problema é o que possuímos como ‘subsídio’ para nossa criatividade, ou seja, apenas o empirismo de nossos cotidianos particulares. Estamos entregues à produção sem vínculos com boas referências e, nos piores casos, uma produção que não anda junto com o hábito da leitura.


É preciso cultivar para colher

Não podemos continuar pensando que os moradores de uma favela “só podem” tocar e cantar funk pancadão, rap e swingueira; que a periferia só pode ouvir e cantar pagode, reagge, forró – sem desmerecer nenhuma dessas expressões – porque esse é o retrato de suas comunidades. Certa vez li em uma rede social alguém dizer que a elite já teve seu espaço e agora devemos deixar a periferia ter o seu, mostrando o que “ela possui”.

Quem disse que na periferia não há pessoas interessadas em música clássica, MPB, música ambiental e tantas outras expressões que sequer encontram-se na grande mídia? Quem disse que nesses setores da sociedade não há quem consuma boa leitura, não só estrangeira, mas nacional? Tudo depende da disposição e da boa vontade em se buscar o novo, o diferente; tudo depende da atitude de se querer cultivar uma boa cultura.

Recordo agora uma conversa que tive com uma pessoa, quando passei um curto período em Fortaleza, sobre um grupo de crianças de um projeto musical, uma espécie de orquestra popular composta por tambores e outros instrumentos. Tudo feito de forma artesanal devido à pouca condição; no entanto, a música que saía desses instrumentos possuíam qualidade. Detalhe: só para o papa eles já haviam tocado quatro vezes, reforçou meu interlocutor.

Quem disse que produto da periferia não pode ter qualidade? Que só se pode retratar a violência que se ver por todos os lados? Mas se tiver de mostrá-la, que se faça com qualidade, com estilo. Esses elementos se adquire em boas produções, boas leituras. Se essas produções não estão ao alcance financeiro de todos, podem ser encontradas em outros lugares como bibliotecas públicas e espaços literários. Não há desculpas! Fica o exemplo citado.


As exigências não são apenas editoriais, devem ser acima de tudo pessoais

As exigências das editoras visam questões pontuais: a qualidade do que se produz, se é rentável publicar certa obra etc. Quem produz, deveria estar em condições de concorrer com suas obras nesse mercado. O problema é que os autores iniciantes – em sua maioria – não têm ideia de como o mercado editorial funciona. A palavra ‘mercado’ aqui é o ponto. Onde há mercado há lucros e perdas e ninguém quer sair perdendo nesse jogo. Além disso, existe o fato das editoras (as grandes principalmente) ter preferência em publicar quem já é conhecido. Muitas vezes nem precisa ser conhecido no meio literário, basta ser uma pessoa com uma imagem já creditada pela grande mídia. A razão é bem simples: editoras não gostam de apostar no escuro, elas querem todas as luzes bem acesas para que possam fazer o melhor lance possível. Não entram para perder.

Temos, por outro lado, um crescimento considerável de pequenas editoras no país que são mais flexíveis e dão preferência a autores iniciantes, mas essas também possuem suas exigências pelos mesmos motivos já citados.

Em setembro de 2017 aconteceu a Bienal do livro, no Rio de Janeiro, onde essas editoras menores debateram sobre a questão do atual mercado editorial em nosso país, e como podiam criar estratégias para que o livro chegasse nas mãos de um número maior de leitores. Muitas são unânimes em afirmar que seu foco (além do lucro) é fomentar o hábito da leitura no país com a consequente formação de leitores. E que a batalha é encontrar “bons autores” para que se busque um público para eles.

Uma pessoa de uma dessas editoras (não quero citar nomes, pois não vem ao caso), e que participou do debate, disse ter ficado impressionada com o número de publicações no Brasil, e que tem editora com até 70 publicações por mês.

Temos então o seguinte quadro: há pessoas publicando no Brasil em grande escala. Mas quem são esses autores? De fato, muito já se tem produzido nesses últimos anos, tanto no Brasil como no exterior. É grande a safra de novos autores, principalmente na ficção, filão que ainda possui grande preferência de público.

Devemos considerar ainda uma outra questão: os autores que possuem uma certa condição financeira, tiram do bolso e pagam a uma editora ― as que trabalham com prestação de serviço ― para ter sua obra publicada. Também é uma forma de ser publicado, sem ‘maiores’ exigências. Mas e aqueles autores que não possuem condições de bancar a própria obra e não conseguem espaço entre as editoras convencionais?


A autopublicação no Brasil

Os autores iniciantes podem contar hoje com o “gratificante” trabalho das editoras alternativas (como estou chamando aqui) que lidam com a autopublicação. Como assim? Se você tem uma obra escrita, em qualquer gênero, e deseja publicá-la sem nenhum custo editorial é só enviar para uma dessas editoras que ela publica por meio de uma plataforma bem interativa. Simples assim.

No entanto, sempre há algum gasto com a obra. Se você não for uma pessoa que gosta de correr riscos e preza por um texto limpo e isento de erros gramaticais – pelo menos isso –, como autor, você confiará o seu original a um profissional que fará as possíveis correções antes de autopublicar. Isso sem contar outros serviços como capa, ficha catalográfica, ISBN (se você faz questão de tê-lo), diagramação etc. Isso sempre traz algum gasto. No final, compete à pessoa decidir se vale ou não a pena autopublicar uma obra.

É aqui que reside o lado obscuro da autopublicação. Muitos autores iniciantes, no afã de ter uma obra exposta na plataforma de uma editora alternativa, não dão à mínima para essas questões técnicas. Se juntarmos isso às questões culturais abordadas aqui, o que teremos é uma grande quantidade de obras de conteúdo que podem agradar ou desagradar quem arriscar comprá-las.

Existem no mercado algumas plataformas de autopublicação, tais como: Clube de autores (pioneira no ramo); Bookeers; Amazon, com a plataforma Kindle Direct Publishing; a Publique-se, da livraria Saraiva; Writing Life, plataforma de autopublicação para Kobo, leitor digital também da Saraiva e principal concorrente do Kindle; além do e-galáxia.


Vantagens e desvantagens da autopublicação

É óbvio que a principal vantagem da autopublicação é a gratuidade do serviço que a maioria das plataformas fornece. No clube de autores, por exemplo, quando o autor envia o seu livro em formato PDF (esse costuma ser o formato solicitado) a obra já cai no catálogo da editora com o preço estabelecido. O mesmo acontece em outras plataformas.

Já as desvantagens podemos elencá-las:

1ª- “geralmente” as plataformas não dão um suporte de divulgação para as obras. Uma vez autopublicado cabe ao autor divulgar sua obra por meio das ferramentas que a internet dispõe, como redes sociais.

Algumas plataformas ainda disponibilizam a obra do autor em outros sites de grande circulação, no entanto, isso não garante muito que a obra seja lida, pois sendo o autor ainda desconhecido ela será apenas uma entre tantas outras.

2ª- qualquer pessoa pode publicar, independente da qualidade da obra. A filosofia de plataformas como Clube de autores, por exemplo, é: se você quer publicar, nós publicamos; o crivo sobre sua obra é dado pelo público. É justo, mas volto a frisar que o maior responsável pela qualidade do que se produz é o autor. Sendo autopublicação, a editora não dará dicas ou qualquer outro apoio ao autor para a melhoria de sua produção.

3ª- há uma grande diferença – isso é verificável – de uma obra ser recebida por uma editora convencional, lida, avaliada e comprada por essa editora, em vez de apenas lançada pelo próprio autor numa plataforma de autopublicação. Soa severo, mas é fato. Uma obra que foi sondada e aceita por uma editora convencional, possui um mérito diferente: sua qualidade literária foi reconhecida.

A autopublicação disponibilizou a produção em larga escala, entretanto, sem o fator “avaliação” o que teremos de produção brasileira de verdade? Qual identidade literária nosso país terá, daqui a algum tempo? Teremos mais quantidade ou qualidade?

Não há dúvida de que existem bons autores nessas plataformas de autopublicação – eu conheço alguns. São autores que poderiam ter seu espaço nas editoras convencionais, mas não são conhecidos o suficiente e buscam o meio mais alternativo ― e que deve sim existir, não digo o contrário ― para ter suas ideias avaliadas pelo grande público.

Referência:

Brasil Escola. Educação no Brasil. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/educacao/educacao-no-brasil.htm#slider-1>.

segunda-feira, 18 de abril de 2022

 












William Wymark Jacobs nasceu em Wapping, Londres, Inglaterra, no dia 8 de setembro de 1863 em uma modesta família. Seu pai era gerente em um cais, por essa razão, desde criança o jovem Jacobs sentia atração por embarcações e tudo relacionado com a vida sombria do cais, fato que veio a ter grande influência em sua literatura. Embora a condição da família fosse escassa, chegou a frequentar uma escola particular em Londres.

Em 1879 tornou-se funcionário do serviço civil e de 1883 à 1899, do departamento de poupança. Suas primeiras publicações vieram em 1885 quando, por meio do anonimato, passou a enviar alguns esboços de histórias para revistas. Suas primeiras produções, embora experimentais e ingênuas, revelavam um escritor em potencial com uma carreira promissora. Autores conhecidos na época como Henry James, que veio a escrever a novela de grande sucesso Outra volta do parafuso, fez comentários fervorosos sobre os trabalhos de Jacobs.

Sua primeira coleção de contos, Many Cargoes, veio em 1896, seguida pela novela The Skipper’s Wooing de 1897 e outra coleção de contos, Sea Ouriços, de 1898. Suas novelas, Dialstone Lane, de 1904 e Sunwich Port, de 1902, estão entre os melhores trabalhos de William Jacob, sempre tendo a subclasse britânica como tema central. Mas foi a terceira dessas coletâneas, intitulada The Lady of the Barge (1902), e que trazia histórias curtas de horror, que Jacobs publica seu trabalho mais conhecido: a pata do macaco.

Sua última coleção de contos, Night Watches, foi publicada em 1914.


A pata do macaco

Curto, sucinto e direto, esse conto é uma verdadeira aula de como escrever uma excelente história de horror sem apelações. Nessa história, não encontramos fantasmas que se levantam com corpos maltrapilhos e rostos lívidos; ou seres fantásticos de origem inexplicável que chegam para atormentar a vida de pobres protagonistas impotentes. O que encontramos é uma família inglesa simples, que leva uma vida modesta, mas que tem seu cotidiano abalado pela influência de uma força desconhecida concentrada em um amuleto: uma pata de macaco.

Os acontecimentos sucedem-se de maneira comum, como em qualquer cotidiano, mas aos poucos vão ganhando uma carga de dramaticidade tão intensa que quando o leitor se dar conta já foi pego pela história.

Durante uma noite úmida, a família White recebe a visita do sargento Morris, um antigo amigo do senhor White. Segue-se um momento de conversas em que o marinheiro conta suas aventuras por outras terras, quando o anfitrião lembra de um assunto prenunciado pelo amigo viajante em um outro momento a respeito de certo amuletoMorris tenta evitar o assunto, mas ao perceber a curiosidade do filho e da esposa do amigo resolve tirar a tal pata do bolso e mostrá-la à família. O objeto chama atenção pela aparência mumificada um tanto asquerosa, ao mesmo tempo que aumenta a curiosidade do senhor White quanto à sua finalidade.

Informados de que o objeto fora preparado por um faquir que deu a ele a propriedade de conceder três desejos a quem o possuir, logo o senhor White sente uma irresistível atração pela pata mumificada, chegando mesmo a resgatá-la do fogo quando Morris a joga na lareira. O sargento o exorta para que deixe o objeto queimar, mas a curiosidade é maior e o senhor White se apossar do talismã. Vencido, ou simplesmente sem nenhuma intenção mais fervorosa de impedir a decisão do amigo, Morris apenas o aconselha a fazer pedidos sensatos.

Depois de um tempo pensando no que poderia pedir, sob as piadas divertidas tanto do filho quanto da esposa por ter decidido se apropriar de algo tão repulsivo e carregado de superstição, o senhor White resolve começar pedindo 200 libras. O pedido poderia ser atendido da maneira mais imprevisível, confundido-se mesmo com uma simples coincidência, dissera-lhe o sargento.

Alguns dias depois, chega à casa dos White a trágica notícia de que Herbert, o filho do casal, havia morrido em um acidente de trabalho. A empresa em que o rapaz trabalhava envia um funcionário para entregar à família uma indenização pela perda. O valor? Duzentas libras.

A partir desse ponto, a história fica tensa e pontuada de morbidez. Após duas semanas, a mãe desolada lembra da pata e, em completo desequilíbrio, intima o marido a fazer o seu segundo desejo, pedindo o retorno do filho de seu túmulo. O homem fica aterrorizado com a ideia da esposa, tenta dissuadi-la, mas em vão.

Aqui, William Jacobs formula a construção de seu terror psicológico, quando o autor coloca na boca do marido abalado pelo pedido da esposa as palavras sobre o filho morto: “Ele está morto há dez dias”. E ainda: “Eu só consegui reconhecê-lo pelas roupas”. Encontramos nesses ‘ganchos’ a conexão com os fatos seguintes, quando o senhor White cede aos rogos implacáveis da esposa, fazendo o pedido.

Há um momento de pura tensão após o pedido hediondo que faz o leitor sentir-se penetrado na própria história. Aparentemente, o desejo não funciona, para desolação da mãe angustiada e alívio do marido aterrorizado. Mas algo acontece quando o senhor White desce as escadas até a sala e ouve uma batida na porta que soa agourenta.

Ele retorna ao quarto onde a esposa havia voltado para a cama e, aos poucos, ela também ouve as batidas à medida que vão ficando mais fortes. Começa uma peleja desesperada em que o esposo tenta impedir a mulher ― e mãe decidida ― de abrir a porta.

A tensão aumenta ganhando uma dimensão gradativa de puro terror. As palavras do marido, dirigidas à esposa alucinada a respeito do próprio filho: “Pelo amor de Deus não deixe ‘isso’ entrar”, evidenciam toda a morbidez da situação criada pelo autor.

Em nenhum momento, entre as tentativas da mulher em abrir a porta e a busca desesperada do esposo pela pata que caíra de sua mão, a porta se abrirá, embora isso pareça iminente.

As batidas continuam insistentes do lado de fora. Alguém quer entrar. A mãe grita: “estou indo filhinho”, o marido busca pela pata no escuro do ambiente para reverter a situação com o seu terceiro e último pedido. Ele por fim a encontra, segura firme e faz o derradeiro desejo, no momento exato em que a mãe abre a porta para apenas sentir a brisa fria que invade a casa.

É difícil não perceber nesse conto certa analogia com a história de Aladim e sua lâmpada mágica. Porém, aqui, os três pedidos não são doados de graça, pois o objeto sempre os concede tirando algo do solicitante. É óbvio o tom mórbido e aterrorizante que William Jacobs imprimiu ao tão conhecido conto infantil.

O terror psicológico nessa história magistral é construído por meio de palavras-chave já citadas (“ele está morto há dez dias” e “pelo amor de Deus não deixe isso entrar”) e de insinuações como a porta que não abre para o “ser” do outro lado pedindo entrada de forma insistente. Essa fórmula apresenta um terror sem apelações, pois deixa as lacunas para serem preenchida pela imaginação do leitor.

Difícil não imaginar como o rapaz do outro lado da soleira deveria encontrar-se em aparência depois que o pai, em parágrafos anteriores, diz à esposa: “eu só o reconheci pela roupa do corpo”.

O conto já teve inúmeras adaptações tanto para o teatro quanto para produções cinematográficas, incluindo produções brasileiras. Aconselho um primeiro contato com a obra pela própria obra, uma vez que adaptações são apenas visões do adaptador, mantendo alguma coerência com a história original, mas distanciando-se de modo geral.

Uma obra para permanecer na mente do leitor por um bom tempo, devido à criatividade e maestria empreendidas por Jacobs. Se você ainda não leu, aconselho uma leitura imediata desse clássico da literatura de gênero.


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O gênero de mistério/suspense que tanto amamos


É inegável que Edgar Allan Poe foi a mente criadora do gênero policial em sua época. Esse grande escritor nos legou histórias repletas de suspense, mistério e todo o teor mórbido tão próprio de suas produções. Estava criada assim a fórmula que ganharia as páginas dos livros e, posteriormente, as telas do cinema nos séculos subsequentes. De fato, nunca se produziu tanto dentro do gênero de mistério/suspense. Algumas pérolas já foram “iconificadas”, deixando em nossas mentes o assombro e em nossos espíritos o tão desejado “quero mais”. É claro que não tem como abordar aqui tudo o que já se produziu em termos de histórias de mistério. Por essa razão, escolhi duas grandes produções cinematográficas que foram adaptadas a partir de obras literárias e que não deixaram nada – ou quase nada – a desejar às obras originais.

As características comuns em cada uma das histórias aqui apresentadas seguem alguns critérios que deixam o telespectador ansioso e ao mesmo tempo empolgado por novos desdobramentos.

O BEBÊ DE ROSEMARY

A primeira produção ficou muito conhecida por causar grande rebuliço no cinema da década de 60. O bebê de Rosemary, produção de Roman Polanski, traz a história de Rosemary Woodhouse, uma mulher meiga e de aspecto ingênuo casada com o ator Guy Woodhouse.

Na trama, temos uma conspiração em torno de Rosemary, envolvendo seu marido e um grupo de satanistas que moram em um polêmico edifício de Nova Iorque: o Bramford, famoso por ter sido palco de eventos horrendos. A mais macabra das histórias envolvendo o tal edifício foi um ritual feito por um famigerado satanista conhecido como Adrian Marcato, que, em fins de século XIX, teria evocado o próprio Satã. Depois de conhecer seus vizinhos, Roman e Mine Castevet, a vida de Rosemary torna-se bastante agitada, uma vez que o casal de idosos passa a ser uma presença constante na vida do jovem casal recém chegado, principalmente depois que Rosemary engravida. Guy, que vinha tendo problemas para conseguir papéis em grandes produções, dá um salto da noite para o dia depois de suas conversas particulares com o senhor Castevet. Paralelo a isso, Rosemary passar a ter a gravidez mais estranha e tortuosa que uma mãe poderia ter, sempre assistida por Mine e por seu conhecido médico. Não demora para que a verdade por trás da gravidez, a real identidade de Roman Castevet e o envolvimento de Guy na conspiração, tornem-se para Rosemary um pesadelo sem precedentes que irá mudar sua vida para sempre.

O filme é uma adaptação do romance homônimo, do escritor Ira Levin (1929 – 2007) de 1967. O bebê de Rosemary tem todos os “ingredientes” fascinantes – ou os critérios mencionados acima – de uma ótima história de mistério/suspense. Vamos a cada um deles:

Uma narrativa feita por alguém revelando um fato medonho que servirá de fulcro para toda a história

Na obra, assim como no filme, é Hutch, um inglês de cinquenta e poucos anos, amigo e quase como um pai para Rosemary, quem revela para o casal sobre os eventos macabros ocorridos no Bramdford, e que envolvem canibalismo, bacanais e rituais de magia negra. Faz-se todo um panorama nada hospitaleiro em torno do famigerado edifício, o que reforça a curiosidade do telespectador quanto aos acontecimentos vindouros.

O suspense é construído aos poucos

O mistério começa assim que Rosemary e Guy entram no edifício Bramford para ver o apartamento, antes mesmo de sua visita à casa de Hutch para almoçarem (na obra, eles comem em um restaurante).

Outros elementos vão surgindo e dando esboço ao mistério: uma estante fora de lugar revelando um armário na parede que nem mesmo o administrador do edifício sabia que existia; um pequeno herbário esquecido e já ressequido, são algumas das estranhas evidências com que o casal se depara.

Investigações que trazem revelações intrigantes

Lá pela metade do filme, Rosemary recebe um livro que lhe é entregue a pedido de Hutch – que falece em circunstâncias duvidosas –; o título da obra: Todos são bruxos. Além disso, Hutch, em seus últimos minutos de consciência, faz com que a pessoa diga a Rosemary o seguinte: “diga a ela que o nome é um anagrama”.

Por meio desse livro, Rosemary tem conhecimento de várias pessoas que lidam com o sobrenatural, entre elas, o famigerado Adrian Marcato. Intrigada com a mensagem sobre o tal anagrama (técnica que consiste na formação de novas palavras pela inversão das sílabas), ela logo começa a verificar várias possibilidades de anagramas com palavras do livro, começando pelo título.

Sem sucesso nas tentativas, Rosemary faz uma última, utilizando-se do nome de Adrian Marcato, e tem uma terrível surpresa.

O bebê de Rosemary, durante muito tempo, foi considerado um grande clássico do cinema de horror, influenciando nomes como José Mojica Marins, o zé do caixão.

Em 2018, fez exatamente meio século que essa grande adaptação de 1968 ganhou os cinemas, deixando muitos aterrorizados e chocados com o teor trazido por Ira Levin em seu romance.

Na época em que o livro foi adaptado por Polanski, o diretor era satanista declarado, e como todo filme tem muito da visão do diretor, Polanski resolveu trazer para as telas um simbolismo por trás dessa produção, diretamente ligado à sua confissão filosófica.

Em 1966, um ano antes de Ira Levin escrever O bebe de Rosemary, Anton Lavey criou a bíblia satânica e fundou sua igreja de satã na Califórnia. Quando Roman Polanski decidiu adaptar o romance, ele tinha ideias claras para o seu projeto: associar o nascimento de uma criança obscura com o surgimento da igreja de Lavey.

Isso fica bastante claro nas palavras de Roman Castevet, durante uma festa de Reveillon em seu apartamento, quando ele, cheio de empolgação, diz para seus convidados durante a queima de fogos: “Finalmente pessoal, 1966, o ano 1!” numa referência clara à fundação da igreja de satã naquele ano, uma vez que para os satanistas, 1966 é, de fato, o seu ano 1.

O próprio Anton Lavey faz uma ponta no filme de Polanski. Na cena onde Rosemary está tendo um sonho psicodélico bastante confuso e cheio de simbolismos enigmáticos, resultado das drogas que vinham sendo administradas a ela, surge um personagem com olhos riscados como os de um gato (não precisa dizer quem é, por favor!) para com ela, fazer uma cópula.

Esse personagem estereotipado é Lavey, numa referência clara ao seu significado como líder e fundador de uma instituição alternativa.

As referências aos pequenos símbolos também são visíveis se observados atentamente. 1966 é uma referência ao número 666. Sem o 1 (mil), é só inverter o 9 (de novecentos) e teremos 666. Roman Castevet é o líder do culto satanista. Não seria o seu nome uma alusão à Roma, que abriga a sede da maior instituição religiosa do mundo: a Igreja Católica?

No filme, ele é sem dúvida o novo “papa” desse universo controverso; no próprio sonho alucinante de Rosemary, ele aparece vestido numa espécie de roupa papal. Não deixa de ser interessante observar que o nome de Polanski também é Roman (!).

DE OLHOS BEM FECHADOS

A segunda produção é De olhos bem fechados, de 1999 (Não vamos inverter os noves aqui também, olha a paranoia!) e dirigido por Stanley Kubrick. Esse é um daqueles filmes que faz você grudar na tela e só querer largar depois que souber de todo o desenrolar da trama.

A película traz uma história envolvente pelo ar de mistério que Kubrick soube agregar de forma magistral, com um cenário multicolorido do período natalino mesclado a traços mais soturnos. Aqui vemos Bill Harford (Tom Cruise) como um médico promissor casado com uma linda mulher, Alice (Nicole Kidman). Após uma festa de fim de ano promovida por um de seus pacientes, o ricaço Vitor Ziegler, Bill e Alice estão no quarto de seu apartamento fumando um baseado quando, durante o efeito da erva, eles têm uma discussão por motivos, digamos... banais. Com raiva e impulsionada pela “fumaça”, Alice, após a confissão do marido sobre como confia em sua fidelidade, revela a Bill o desejo que teve, em certa ocasião de uma viagem, de traí-lo com um oficial da marinha com quem cruzou no saguão do hotel em que se hospedaram, após sentir-se atraída pelo homem. Nesse momento o telefone toca e Bill atende, recebendo a notícia de que um de seus pacientes falecera. 

Ele segue para o endereço, já tarde da noite, enquanto, no táxi, fica remoendo a confissão da esposa, imaginando-a em momentos lascivos com o tal oficial. A partir daí, após a visita ao paciente falecido, Bill Harford passa a perambular pelas ruas noturnas de Nova Iorque, dando início a uma grande aventura que envolve prostitutas, um reencontro com um antigo amigo de faculdade em um pub da cidade (cujo primeiro reencontro fora ainda na festa de Ziegler), e o rito orgíaco de uma sociedade secreta em uma mansão afastada que o leva a suspeitar de um segredo envolvendo sua esposa e um assassinato capaz de unir todos esses pontos.

Assim como O bebê de Rosemary, De olhos bem fechados possui os mesmos ingredientes de uma ótima trama de mistério e suspense:

Tudo começa com uma narrativa contada por alguém

Bem, a história narrada por Alice ao marido sobre um desejo de traição e abdicação de sua vida de casada, não é necessariamente o estopim para o desencadear dos fatos, e sim, o telefonema, que faz com que Bill Harford saia de casa para a vida noturna e agitada da cidade.

Entretanto, uma vez que essa história ecoa na mente perturbada do marido, serve de impulso para que ele – numa tentativa de vingar-se da esposa, tentando retribuir traição com traição – penetre em eventos que vão ganhando progressão até o grande ápice: a entrada como penetra em uma enorme mansão vitoriana onde pessoas ocultas por fantasias e máscaras estão participando de um ritual que culmina em cenas de orgia grupal.

Aqui o suspense também é construído de modo progressivo

Após os eventos ocorridos na mansão, que terminam de modo desagradável para Bill Harford, com um aviso de ameaça para que ele não investigue sobre o que vira, uma outra narrativa, também feita por Alice, conduz a história a um outro patamar. Nela, a esposa detalha um sonho que estava tendo no momento em que o marido entra no quarto após a chegada de suas aventuras. A narrativa deixa Bill bastante desconfiado, pois o que Alice descreve o faz lembrar, em detalhes, do que ele havia presenciado na mansão: “várias pessoas estavam nuas e todas estavam trepando”, diz a esposa ao marido.

A desconfiança leva o médico a uma busca para elucidar suas dúvidas, principalmente a pior delas: por que a esposa tivera tal sonho? Teria sido ela envolvida de algum modo com aquelas mulheres mascaradas que se entregavam à orgias alucinantes?

Investigações que ocorrem de modo espontâneo

Bill Harford não vai aos acontecimentos, são os acontecimentos que vão até ele. Aqui, tudo acontece de modo espontâneo: desde a leitura de uma matéria de jornal onde ele descobre sobre a morte por overdose de uma modelo (a mesma que o salva de um destino muito ruim na mansão, e que ele havia salvo antes de uma possível outra overdose na festa de Ziegler,) até o pedido do próprio Ziegler para que ele compareça em sua casa durante a madruga para lhe revelar “quase tudo” sobre a “festinha” na mansão.

De olhos bem fechados também é uma adaptação feita a partir da novela Breve romance de sonho, de 1926, escrita por Arthur Schnitzler. No livro, acompanhamos a mesma trajetória (ou quase toda, considerando a adaptação da obra para o cinema) do médico Fridolin que, casado com Albertine, é provocado pela esposa que lhe faz uma narrativa lasciva.

Stanley Kubrick teve o cuidado de manter a essência da obra, modificando, é claro, o cenário, uma vez que a adaptação leva os acontecimentos para tempos atuais. Aqui também vemos a visão do diretor agregada ao enredo da obra – daí o belíssimo cenário multicores proporcionado pela iluminação natalina dos pisca-piscas e árvores de natal – algo que me faz assistir a esse filme sempre no período natalino. Além disso, existe toda uma teoria em torno do real objetivo de Kubrick em adaptar essa obra, o que envolveria denúncias latentes sobre o universo dos magnatas e toda uma influencia mental direcionada à mulheres ligadas às passarelas por meio de programação da mente para que se tornem objetos inconscientes de prazer. Quanto a isso, não entrarei na questão por não saber até onde trata-se de realidade ou mera teoria. Na internet é possível – caso você se interesse – encontrar material que aborda esse lado obscuro das produções cinematográficas.