segunda-feira, 18 de abril de 2022

 

O gênero de mistério/suspense que tanto amamos


É inegável que Edgar Allan Poe foi a mente criadora do gênero policial em sua época. Esse grande escritor nos legou histórias repletas de suspense, mistério e todo o teor mórbido tão próprio de suas produções. Estava criada assim a fórmula que ganharia as páginas dos livros e, posteriormente, as telas do cinema nos séculos subsequentes. De fato, nunca se produziu tanto dentro do gênero de mistério/suspense. Algumas pérolas já foram “iconificadas”, deixando em nossas mentes o assombro e em nossos espíritos o tão desejado “quero mais”. É claro que não tem como abordar aqui tudo o que já se produziu em termos de histórias de mistério. Por essa razão, escolhi duas grandes produções cinematográficas que foram adaptadas a partir de obras literárias e que não deixaram nada – ou quase nada – a desejar às obras originais.

As características comuns em cada uma das histórias aqui apresentadas seguem alguns critérios que deixam o telespectador ansioso e ao mesmo tempo empolgado por novos desdobramentos.

O BEBÊ DE ROSEMARY

A primeira produção ficou muito conhecida por causar grande rebuliço no cinema da década de 60. O bebê de Rosemary, produção de Roman Polanski, traz a história de Rosemary Woodhouse, uma mulher meiga e de aspecto ingênuo casada com o ator Guy Woodhouse.

Na trama, temos uma conspiração em torno de Rosemary, envolvendo seu marido e um grupo de satanistas que moram em um polêmico edifício de Nova Iorque: o Bramford, famoso por ter sido palco de eventos horrendos. A mais macabra das histórias envolvendo o tal edifício foi um ritual feito por um famigerado satanista conhecido como Adrian Marcato, que, em fins de século XIX, teria evocado o próprio Satã. Depois de conhecer seus vizinhos, Roman e Mine Castevet, a vida de Rosemary torna-se bastante agitada, uma vez que o casal de idosos passa a ser uma presença constante na vida do jovem casal recém chegado, principalmente depois que Rosemary engravida. Guy, que vinha tendo problemas para conseguir papéis em grandes produções, dá um salto da noite para o dia depois de suas conversas particulares com o senhor Castevet. Paralelo a isso, Rosemary passar a ter a gravidez mais estranha e tortuosa que uma mãe poderia ter, sempre assistida por Mine e por seu conhecido médico. Não demora para que a verdade por trás da gravidez, a real identidade de Roman Castevet e o envolvimento de Guy na conspiração, tornem-se para Rosemary um pesadelo sem precedentes que irá mudar sua vida para sempre.

O filme é uma adaptação do romance homônimo, do escritor Ira Levin (1929 – 2007) de 1967. O bebê de Rosemary tem todos os “ingredientes” fascinantes – ou os critérios mencionados acima – de uma ótima história de mistério/suspense. Vamos a cada um deles:

Uma narrativa feita por alguém revelando um fato medonho que servirá de fulcro para toda a história

Na obra, assim como no filme, é Hutch, um inglês de cinquenta e poucos anos, amigo e quase como um pai para Rosemary, quem revela para o casal sobre os eventos macabros ocorridos no Bramdford, e que envolvem canibalismo, bacanais e rituais de magia negra. Faz-se todo um panorama nada hospitaleiro em torno do famigerado edifício, o que reforça a curiosidade do telespectador quanto aos acontecimentos vindouros.

O suspense é construído aos poucos

O mistério começa assim que Rosemary e Guy entram no edifício Bramford para ver o apartamento, antes mesmo de sua visita à casa de Hutch para almoçarem (na obra, eles comem em um restaurante).

Outros elementos vão surgindo e dando esboço ao mistério: uma estante fora de lugar revelando um armário na parede que nem mesmo o administrador do edifício sabia que existia; um pequeno herbário esquecido e já ressequido, são algumas das estranhas evidências com que o casal se depara.

Investigações que trazem revelações intrigantes

Lá pela metade do filme, Rosemary recebe um livro que lhe é entregue a pedido de Hutch – que falece em circunstâncias duvidosas –; o título da obra: Todos são bruxos. Além disso, Hutch, em seus últimos minutos de consciência, faz com que a pessoa diga a Rosemary o seguinte: “diga a ela que o nome é um anagrama”.

Por meio desse livro, Rosemary tem conhecimento de várias pessoas que lidam com o sobrenatural, entre elas, o famigerado Adrian Marcato. Intrigada com a mensagem sobre o tal anagrama (técnica que consiste na formação de novas palavras pela inversão das sílabas), ela logo começa a verificar várias possibilidades de anagramas com palavras do livro, começando pelo título.

Sem sucesso nas tentativas, Rosemary faz uma última, utilizando-se do nome de Adrian Marcato, e tem uma terrível surpresa.

O bebê de Rosemary, durante muito tempo, foi considerado um grande clássico do cinema de horror, influenciando nomes como José Mojica Marins, o zé do caixão.

Em 2018, fez exatamente meio século que essa grande adaptação de 1968 ganhou os cinemas, deixando muitos aterrorizados e chocados com o teor trazido por Ira Levin em seu romance.

Na época em que o livro foi adaptado por Polanski, o diretor era satanista declarado, e como todo filme tem muito da visão do diretor, Polanski resolveu trazer para as telas um simbolismo por trás dessa produção, diretamente ligado à sua confissão filosófica.

Em 1966, um ano antes de Ira Levin escrever O bebe de Rosemary, Anton Lavey criou a bíblia satânica e fundou sua igreja de satã na Califórnia. Quando Roman Polanski decidiu adaptar o romance, ele tinha ideias claras para o seu projeto: associar o nascimento de uma criança obscura com o surgimento da igreja de Lavey.

Isso fica bastante claro nas palavras de Roman Castevet, durante uma festa de Reveillon em seu apartamento, quando ele, cheio de empolgação, diz para seus convidados durante a queima de fogos: “Finalmente pessoal, 1966, o ano 1!” numa referência clara à fundação da igreja de satã naquele ano, uma vez que para os satanistas, 1966 é, de fato, o seu ano 1.

O próprio Anton Lavey faz uma ponta no filme de Polanski. Na cena onde Rosemary está tendo um sonho psicodélico bastante confuso e cheio de simbolismos enigmáticos, resultado das drogas que vinham sendo administradas a ela, surge um personagem com olhos riscados como os de um gato (não precisa dizer quem é, por favor!) para com ela, fazer uma cópula.

Esse personagem estereotipado é Lavey, numa referência clara ao seu significado como líder e fundador de uma instituição alternativa.

As referências aos pequenos símbolos também são visíveis se observados atentamente. 1966 é uma referência ao número 666. Sem o 1 (mil), é só inverter o 9 (de novecentos) e teremos 666. Roman Castevet é o líder do culto satanista. Não seria o seu nome uma alusão à Roma, que abriga a sede da maior instituição religiosa do mundo: a Igreja Católica?

No filme, ele é sem dúvida o novo “papa” desse universo controverso; no próprio sonho alucinante de Rosemary, ele aparece vestido numa espécie de roupa papal. Não deixa de ser interessante observar que o nome de Polanski também é Roman (!).

DE OLHOS BEM FECHADOS

A segunda produção é De olhos bem fechados, de 1999 (Não vamos inverter os noves aqui também, olha a paranoia!) e dirigido por Stanley Kubrick. Esse é um daqueles filmes que faz você grudar na tela e só querer largar depois que souber de todo o desenrolar da trama.

A película traz uma história envolvente pelo ar de mistério que Kubrick soube agregar de forma magistral, com um cenário multicolorido do período natalino mesclado a traços mais soturnos. Aqui vemos Bill Harford (Tom Cruise) como um médico promissor casado com uma linda mulher, Alice (Nicole Kidman). Após uma festa de fim de ano promovida por um de seus pacientes, o ricaço Vitor Ziegler, Bill e Alice estão no quarto de seu apartamento fumando um baseado quando, durante o efeito da erva, eles têm uma discussão por motivos, digamos... banais. Com raiva e impulsionada pela “fumaça”, Alice, após a confissão do marido sobre como confia em sua fidelidade, revela a Bill o desejo que teve, em certa ocasião de uma viagem, de traí-lo com um oficial da marinha com quem cruzou no saguão do hotel em que se hospedaram, após sentir-se atraída pelo homem. Nesse momento o telefone toca e Bill atende, recebendo a notícia de que um de seus pacientes falecera. 

Ele segue para o endereço, já tarde da noite, enquanto, no táxi, fica remoendo a confissão da esposa, imaginando-a em momentos lascivos com o tal oficial. A partir daí, após a visita ao paciente falecido, Bill Harford passa a perambular pelas ruas noturnas de Nova Iorque, dando início a uma grande aventura que envolve prostitutas, um reencontro com um antigo amigo de faculdade em um pub da cidade (cujo primeiro reencontro fora ainda na festa de Ziegler), e o rito orgíaco de uma sociedade secreta em uma mansão afastada que o leva a suspeitar de um segredo envolvendo sua esposa e um assassinato capaz de unir todos esses pontos.

Assim como O bebê de Rosemary, De olhos bem fechados possui os mesmos ingredientes de uma ótima trama de mistério e suspense:

Tudo começa com uma narrativa contada por alguém

Bem, a história narrada por Alice ao marido sobre um desejo de traição e abdicação de sua vida de casada, não é necessariamente o estopim para o desencadear dos fatos, e sim, o telefonema, que faz com que Bill Harford saia de casa para a vida noturna e agitada da cidade.

Entretanto, uma vez que essa história ecoa na mente perturbada do marido, serve de impulso para que ele – numa tentativa de vingar-se da esposa, tentando retribuir traição com traição – penetre em eventos que vão ganhando progressão até o grande ápice: a entrada como penetra em uma enorme mansão vitoriana onde pessoas ocultas por fantasias e máscaras estão participando de um ritual que culmina em cenas de orgia grupal.

Aqui o suspense também é construído de modo progressivo

Após os eventos ocorridos na mansão, que terminam de modo desagradável para Bill Harford, com um aviso de ameaça para que ele não investigue sobre o que vira, uma outra narrativa, também feita por Alice, conduz a história a um outro patamar. Nela, a esposa detalha um sonho que estava tendo no momento em que o marido entra no quarto após a chegada de suas aventuras. A narrativa deixa Bill bastante desconfiado, pois o que Alice descreve o faz lembrar, em detalhes, do que ele havia presenciado na mansão: “várias pessoas estavam nuas e todas estavam trepando”, diz a esposa ao marido.

A desconfiança leva o médico a uma busca para elucidar suas dúvidas, principalmente a pior delas: por que a esposa tivera tal sonho? Teria sido ela envolvida de algum modo com aquelas mulheres mascaradas que se entregavam à orgias alucinantes?

Investigações que ocorrem de modo espontâneo

Bill Harford não vai aos acontecimentos, são os acontecimentos que vão até ele. Aqui, tudo acontece de modo espontâneo: desde a leitura de uma matéria de jornal onde ele descobre sobre a morte por overdose de uma modelo (a mesma que o salva de um destino muito ruim na mansão, e que ele havia salvo antes de uma possível outra overdose na festa de Ziegler,) até o pedido do próprio Ziegler para que ele compareça em sua casa durante a madruga para lhe revelar “quase tudo” sobre a “festinha” na mansão.

De olhos bem fechados também é uma adaptação feita a partir da novela Breve romance de sonho, de 1926, escrita por Arthur Schnitzler. No livro, acompanhamos a mesma trajetória (ou quase toda, considerando a adaptação da obra para o cinema) do médico Fridolin que, casado com Albertine, é provocado pela esposa que lhe faz uma narrativa lasciva.

Stanley Kubrick teve o cuidado de manter a essência da obra, modificando, é claro, o cenário, uma vez que a adaptação leva os acontecimentos para tempos atuais. Aqui também vemos a visão do diretor agregada ao enredo da obra – daí o belíssimo cenário multicores proporcionado pela iluminação natalina dos pisca-piscas e árvores de natal – algo que me faz assistir a esse filme sempre no período natalino. Além disso, existe toda uma teoria em torno do real objetivo de Kubrick em adaptar essa obra, o que envolveria denúncias latentes sobre o universo dos magnatas e toda uma influencia mental direcionada à mulheres ligadas às passarelas por meio de programação da mente para que se tornem objetos inconscientes de prazer. Quanto a isso, não entrarei na questão por não saber até onde trata-se de realidade ou mera teoria. Na internet é possível – caso você se interesse – encontrar material que aborda esse lado obscuro das produções cinematográficas.

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